sábado, 6 de dezembro de 2008

Uma História de Coragem

Segunda-feira 1 de Dezembro, foi o Dia Mundial do Combate ao SIDA. Acordei a pensar o que poderia fazer de especial para assinalar esta data, uma vez que o meu dia à partida seria anormalmente atarefado com reuniões de tabalho seguidas para aproveitar a presença do chefe na cidade.

O dia passou sem que voltasse a pensar no assunto até ao final do expediente, quando fomos à nossa última uma reunião no edifício da Vodacom. Aí constatei com satisfação que gesto de responsabilidade social esta empresa distribuiu t-shirts vermelhas e brancas aos seus trabalhadores que assim se apresentaram vestidos.

Já em casa liguei a TV e vi os dançarinos da nossa internacionalmente consagrada Companhia Nacional de Canto e Dança, num bailado deslumbrante alusivo ao dia. Sabia que esse muito anunciado show estava a decorrer, e teria até gostado de ter ido, mas não tive energia para enfrentar a multidão que se concentrou no Cine-teatro África, por isso achei óptimo poder participar a partir de casa.

Anabela Adrianopolous entrou em cena logo a seguir, com aquela voz bonita, determinada, e forte, para falar em Laços e Abraços. Não pude evitar lágrimas de emoção ao sentir o toque penetrante da voz daquela mulher bela, mãe, amiga, trabalhadora trajada de branco e também subtilmente de vermelho, como as pontas de um laço num abraço... Adorei o seu singelo poema de amor e paz, e também gostei da mensagem carinhosa do Stewart de consciencialização para que todos saibamos qual é o nosso estado.

Mais tarde ao abrir e-mails, recebi um link da Christian Aid, uma ONG Britânica que trabalha em projectos e programas de desenvolvimento e procura obter informação de retorno, ou feedback, sobre o papel da Igreja na luta contra o HIV/SIDA. Gostei da verticalidade do debate em curso, apenas em Inglês, por isso convido a quem se interessar a dar uma vista de olhos em: http://www.christianaid.org.uk/world-aids-day/wad-have-your-say.aspx.

Em retrospectiva, nada mais fiz relacionado com o dia Mundial do Combate ao HIV/SIDA, mas estou tranquila, não era para ser! Quando posso sou mais proactiva nos dias mundiais e internacionais, mas isso não retira o princípio de contribuir para mudanças, em prol do bem estar e harmonia social no resto do ano. Para mim, as datas temáticas são importantes para a elevação da consciência colectiva com vista à adopção de medidas e comportamentos inovadores.

Lembrei-me da marcha na qual participei a um ano atrás em Luanda, que foi simplesmente revigorante, alegre e consciente do papel crucial que as lideranças podem assumir no combate ao SIDA. O Uganda é um exemplo clássico de intervenção do Governo na mudança de comportamento das pessoas que resultou na queda da taxa de infecção pelo HIV de 44.2% em 1998 para 15% em 10 anos.



Este 1° de Dezembro teria passado dessa forma se não fosse o desvendar desta história verídica, que me tem sido contada aos poucos ao longo destes últimos meses, e que finalmente pude entender. Eu estou devidamente autorizada a partilhá-la neste blog, mas intencionalmente substituí os nomes das personagens.

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Raquel, mulher de 32 anos, foi mãe pela primeira vez aos 18. Casou-se nessa altura e foi feliz até perder o segundo filho de 6 anos. Ela e o filho foram internados na mesma altura, ele com malária, e ela com uma gravidez ectópica.

Raquel só veio a saber que o seu menino tinha partido dias depois da sua operação de interrupção daquela gravidez tão desejada, quando finalmente recuperou a consciência da operação que tinha sido longa e complicada. Nos seis meses que se seguiram a essas duas perdas Raquel viveu dilacerada de dores atrozes no baixo ventre, até que voltou a ser operada novamente para retirada de uma tesourinha que tinha sido negligentemente esquecida...

Mas a história de Raquel é mais dramática ainda. Uma vez em casa depois desta segunda operação, começou a ser progressivamente maltratada pelo marido que depois de repetidas vezes a convidar para sair de casa, chegou ao extremo de a pôr em cárcere privado. Ela teimosamente se recusava a sair do lar que os dois tinham construído e este braço de ferro apenas terminou no dia em que o marido também trancou durante uma noite inteira a irmã de Raquel mais nova que tinha ido levar comida. Quando as duas foram libertadas de manhã, Raquel foi arrastada pela irmã para a casa dos pais, onde final e lentamente começou a recuperar a sua forma física.

Os desaires de Raquel porém continuaram mesmo na casa paterna, pois ela ainda teve que passar por mais um teste de coragem. Enquanto convalescia, apercebeu-se com muita dor que as pessoas a evitavam. O seu corpo completamente desfigurado e cheio de úlceras afastava-a dos seus familiares que não tocavam na sua roupa suja e ela, mesmo fraca e gemendo de dores, era obrigada a lavar as mudas pessoais e de cama. A única ajuda que ela diz ter recebido na altura era para de pôr a roupa a secar.

Raquel sentia-se feia pois além das úlceras, o cabelo caíra-lhe todo, e vivia profundamente magoada e triste porque ninguém em casa tocava na louça que ela usava, nem se aproximava dela. Mesmo com a auto-estima muito em baixo, Raquel diz que algo dentro de si lhe deu forças para se cuidar. Valeram-lhe em parte os ensinamentos da sua avó sobre plantas medicinais, e também a sua própria intuição. Carlitos hoje o seu filho único, levava-lhe tubérculos, folhas, plantas, sementes e casca de árvores que ela pedia, tais como, batata africana, folhas de eucalipto, aloé vera, sementes de papaia, apenas para mencionar alguns.

Surpreendentemente a pele enegrecida pelas crostas, deu lugar a uma nova e esta mulher gradualmente recuperou a sua condição física e até onde foi possível o seu equilíbrio emocional.

Uns tempos depois desta saga, Raquel decidiu voltar a procurar trabalho como empregada doméstica, que é a sua profissão, e quis o destino que ela fosse trabalhar para um casal bonito, alegre e que transpirava saúde. Ela se recorda sorrindo que em casa eram todos gordinhos, até a filhinha pequena de quem ela era babá.

Apesar da reviravolta da sua vida junto a esta família, Raquel continuava triste e até zangada com a sua família, e depois, o seu corpo não voltou mais a recuperar o brilho e o seu rosto não perdeu por completo o inchaço. Um dia, em conversa com a patroa Raquel convenceu-se a ir fazer o teste de HIV/SIDA, para descobrir para seu desespero inicial, que era sero-positiva.

Contudo, ela não estava só. Esse casal para quem ela trabalhava e que a acolheu, revelou-lhe que também era HIV-positivo e com eles Raquel aprendeu que é possível viver-se feliz, saudável e ser-se “gordinho” mesmo sendo-se portador do vírus. Além disso, o pessoal de saúde que a aconselhou e lhe deu o amparo que ela necessitava foi instrumental para que ela rapidamente tomasse as rédeas da sua vida.

Foi só nessa altura que Raquel soube que afinal fora submetida ao teste de HIV/SIDA aquando da operação de retirada da tesourinha, e que o resultado tinha sido positivo. O marido e familiares foram imediatamente informados, mas nada lhe disseram. O resultado foi o estigma por parte de todos que ela amava, inclusive Carlitos, que na sua inocência foi instruído a manter-se distante da mãe.

Um dia, numa palestra na escola, o menino ouviu que as pessoas infectadas pelo HIV precisam de ajuda, carinho e amor. Confuso, pediu ajuda ao palestrante que pacientemente lhe explicou como é que a doença evolui no corpo das pessoas e lhe falou sobre o quanto a mãe estava a sofrer. Quando se sentiu capaz, Carlitos deu o primeiro passo de aproximação.

Raquel sorri ao lembrar-se do dia em que o seu filho lhe pediu para tomar um pouco do chá da sua chávena...

Hoje Raquel dá conselhos a familiares e amigos sobre como viver positivamente, e mensalmente faz a contagem de CD4 para monitorar o seu sistema imunológico. Ela é sero-positiva a 5 anos, e não precisa de tomar anti-retrovirais porque o seu nível de imunidade se mantem alto.

Raquel escolheu viver, e diz que quando o seu corpo vacila, ela o carrega para o trabalho e para a vida.

2 comentários:

  1. Anita,
    Compartilhar esta estória tão emocionante e forte é um grande passo para ajudar a superar estigmas e criar cosnciência sobre a realidade que muitas pessoas com HIV sofrem.

    Obrigado, tomara que chege aos lares de muitas Raquels deste mundo e que elas se espelhem na força e vontade de viver dessa mulher.

    Bjs

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  2. Obrigada, mar!
    Chorei...
    Vou mostrar o seu comentário a ela.
    Bjs

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