quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Deus os julgará porque não sabem o que fazem

Por Eve Ensler*

Volto do inferno. Procuro desesperadamente uma maneira para lhes contar o que vi e ouvi na República Democrática do Congo. Procuro uma maneira para lhes narrar as histórias e as atrocidades, e, ao mesmo tempo, evitar que fiquem abatidos, chocados ou afetados mentalmente. Procuro uma maneira de lhes transmitir o meu testemunho sem gritar, sem me imolar ou sem procurar uma AK 47.

Não sou a primeira pessoa que denuncia as violações, as mutilações e as desfigurações das mulheres do Congo. Existem relatórios a respeito deste problema desde 2000. Não sou a primeira que conta essas histórias, mas, como escritora e militante contra a violência sexual contra as mulheres, vivo no mundo da violação. Passei dez anos a ouvir as histórias de mulheres violadas, torturadas, queimadas e mutiladas na Bósnia, Kosovo, Estados Unidos, Cidade Juárez (México), Quênia, Paquistão, Haiti, Filipinas, Iraque e Afeganistão. E, apesar de saber que é perigoso comparar atrocidades e sofrimentos, nada do que eu tinha escutado até agora foi tão horrível e aterrorizador como a destruição da espécie feminina no Congo.

A situação não é mais do que um feminicídio, e temos que a reconhecer e analisar como tal. É um estado de emergência. As mulheres são violadas e assassinadas a toda hora. Os crimes contra o corpo da mulher já são horríveis por si. No entanto, há que acrescentar o seguinte: por causa de uma superstição que diz que, se um homem viola mulheres muito jovens ou muito idosas, obtém poderes especiais, meninas de menos de doze anos de idade e mulheres de mais de oitenta anos são vítimas de violação.

Também é necessário acrescentar as violações das mulheres em frente de seus maridos e filhos. Mas a maior crueldade é a seguinte: soldados soropositivos organizam comandos nas aldeias para violar as mulheres, mutilá-las. Há relatos de centenas de casos de fístulas na vagina e no reto causadas pela introdução de paus, armas ou violações coletivas. Essas mulheres já não conseguem controlar a urina ou as fezes. Depois de serem violadas, as mulheres são também abandonadas por sua família e sua comunidade.

No entanto, o crime mais terrível é a passividade da comunidade internacional, das instituições governamentais, dos meios de comunicação... a indiferença total do mundo perante tal extermínio. Passei duas semanas em Bukavu e Goma entrevistando as sobreviventes. Algumas eram de Bunia. Efetuei pelo menos oito horas de entrevistas por dia. Almocei e fui a sessões de terapia com essas mulheres. Chorei com elas. O nível de atrocidades supera a imaginação. Não tinha visto em nenhuma parte esse tipo de violência, de tortura sexual, de crueldade e de barbárie.

No leste do Congo existe um clima de violência. Nesta zona as violações tornaram-se, tal como me disse uma sobrevivente, um "esporte nacional". As mulheres são menos do que cidadãs de segunda classe. Os animais são mais bem tratados. Parece que todas as tropas estão implicadas nas violações: as FDLR, as Interahamwe, o exército congolês e até as Forças de Paz da ONU. A falta de prevenção, de proteção e a ausência de sanções são alarmantes.

Passei uma semana no Hospital de Panzi, vivendo em uma aldeia de mulheres violadas e torturadas. Era como uma cena de um filme de terror futurista. Ouvi histórias de mulheres que viram os seus filhos serem brutal e cinicamente assassinados. Mulheres que foram forçadas, sob a ameaça de armas, a ingerir excrementos, a beber urina ou a comer bebês mortos. Mulheres que foram testemunhas da mutilação genital dos seus maridos ou, durante semanas, violadas por grupos de homens. Essas mulheres faziam fila para me contar as suas histórias. Os traumas eram enormes e o sofrimento extremamente profundo.

Sentei-me com mulheres que tinham sido cruelmente abandonadas por suas famílias, excluídas por causa do seu cheiro, e pelo que tinham sofrido. Eu quero lhes falar da Noella. Mudei-lhe o nome para a proteger porque ela só tem nove anos de idade. Noella vive dentro de mim agora, persegue-me, leva-me a agir, a lembrar. Ela é magra, muito inteligente e viva. O dano está no seu corpo ligeiramente torto, envergonhado, preocupado. Ela sente a ansiedade nos seus pequenos dedos. Começa a contar a sua história como se ainda vivesse. Para ela o tempo parou.

"Uma noite as Interahamwe vieram à nossa casa. Eles não deixaram nada. Pilharam nossa casa. Levaram a minha mãe para um lado, o meu pai para outro e a mim para outro. Levaram-me para o mato. Um deles pôs qualquer coisa dentro de mim. Não sei o que foi. Um disse para o outro, não faça isso, não faça mal a uma criança. O outro me bateu.. Eu fiquei sangrando. Ele me bateu mais e eu caí. Depois me abandonou. Passei duas semanas com os soldados. Eles me violaram constantemente. Às vezes usavam paus. Um dia me deixaram no mato. Tentei caminhar até a casa do meu tio. Consegui, mas estava demasiado fraca. Tinha febre. Estava muito mal. Cheguei até a casa. O meu pai tinha sido morto. A minha mãe voltou, mas em muito mau estado. Comecei a perder a urina e as fezes sem controle. Depois minha mãe percebeu que eles tinham me violado e destruído. Eles registraram o que tinha me acontecido e me trouxeram para cá. Estou contente por estar aqui. Jánão perco a urina e ninguém ri de mim. Os rapazes riem de mim. Já não tenho vergonha. Deus julgará aqueles homens, porque eles não sabem o que fazem. Quero me restabelecer. Também penso em como eles mataram o meu pai. Sempre que penso no meu pai as lágrimas caem pelo rosto."

O Dr. Mukwege, que, tanto quanto posso dizer, é um tipo de médico "santo" no hospital, disse-me que a uretra da Noella está destruída. Sendo tão jovem, ela não tem tecido suficiente para operar. Terá de esperar oito anos. Oito anos de vergonha e humilhação. Oito anos em que será forçada a recordar todos os dias o que aqueles homens lhe fizeram na floresta, antes dela ter idade suficiente para saber o que era um pênis. Ela é incontinente. O médico me disse: "O que acontece a essas jovens é terrível. Elas têm muito medo de serem tocadas por homens. Às vezes leva semanas até eu conseguir tratá-las. Dou-lhes bombons e trago-lhes bonecas."

As mulheres sofrem imensamente. Estão debilitadas pelas violações, as torturas e a brutalidade. Não têm praticamente apoio nenhum. Depois de viver essas atrocidades, são incapazes de trabalhar nos campos ou de transportar coisas pesadas, por isso deixam de ter renda. Vi chegar pelo menos doze mulheres por dia a essa aldeia. Chegavam mancando e apoiadas em bengalas feitas à mão. Várias mulheres contaram-me que "as florestas cheiravam à morte", e que "não se podia dar nem cinco passos sem tropeçar com um corpo".

Durante a semana que passei em Panzi, o governo cortou a água. Por isso, o hospital, onde havia centenas de mulheres feridas, ficou sem água. O mesmo hospital pelo qual as mulheres tinham andado mais de sessenta quilômetros porque não havia outro mais perto. O mesmo hospital onde não havia nada para comer, (duas crianças morreram por má nutrição em um dia), onde as mulheres tinham de ficar durante meses, às vezes anos, porque as suas aldeias eram tão perigosas ou porque eram tão rejeitadas, após terem sido violadas e desonradas, que não tinham um lugar para onde voltar, onde as mulheres não podiam apresentar queixa porque os violadores podiam facilmente comprar a sua saída da prisão, voltar e violá-las outra vez, ou matá-las.

E, enquanto nós estamos aqui escrevendo nosso relatório, há mulheres que estão sendo violadas, meninas que estão sendo destroçadas para sempre, mulheres sendo testemunhas do assassinato (a golpe de catana) de suas famílias, e outras que estão sendo infectadas pelo vírus da AIDS. Onde está a nossa indignação? Onde está a consciência das pessoas?

Em 1999, eu voltei aos Estados Unidos de uma viagem ao Afeganistão, ainda debaixo do poder dos talibãs. As condições das mulheres, a violência... era uma loucura. Dirigi-me a todas as pessoas que consegui encontrar, canais de televisão, revistas, líderes etc. Com exceção de uma revista, ninguém parecia estar interessado no problema das mulheres afegãs.

Naquela altura eu sabia que, se não se interviesse, se o mundo não se levantasse e ajudasse as mulheres, haveria graves conseqüências internacionais. Sabemos o que aconteceu depois. Não apenas o 11 de Setembro, mas a reação ao 11 de Setembro, a profanação do Iraque, a justificação dos ataques preventivos, o aumento da militarização e violência e o terror que ainda hoje continua a aumentar.

As mulheres são o centro de qualquer cultura e sociedade. Embora possam não ter poder ou direitos, o modo como são tratadas ou não valorizadas, indica o que a sociedade sente em relação à própria vida. As mulheres do Congo são resistentes, poderosas, visionárias e solidárias. Com poucos recursos elas poderiam ser líderes do país e tirá-lo do seu atual estado de desordem, pobreza e caos; ou podem ser aniquiladas e, com elas, o futuro do país. A República Democrática do Congo é o coração da África, o centro dinâmico e a promessa do futuro. Se se permitir a destruição das mulheres, mata-se a vida, não apenas do Congo, mas de todo o continente africano.

Eu estou aqui como artista e ativista, mas, sobretudo, estou aqui como um ser humano destroçado pelo que ouvi na República Democrática do Congo. Estou aqui para implorar àqueles que têm poder, para declarar estado de emergência no leste do Congo, para dar um nome ao que está sendo feito às mulheres: feminicídio. Para se unirem à nossa campanha internacional para parar as violações do melhor recurso do Congo, e dar poder às mulheres e jovens do Congo. Para desenvolver os mecanismos para proteger essas mulheres, para impedir esses crimes horrorosos e desumanos.

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* Eve Ensler é uma escitora, actora, feminista e activista que se tornou conhecida através do seu livro e peça teatral vastamente reproduzida "The Vagina Monologues" (Monólogos da Vagina). Este veículo de comunicação e consciencialização pela arte, foi instrumental na declaração dos 16 dias de activismo contra a Violência para com as Mulheres.

Os 16 Dias de Activismo Contra a Violência para com as Mulheres é uma campanha internacional que nasceu do primeiro Instituto Mundial de Liderança das Mulheres patrocinado por o Center for Women’s Global Leadership (CWGL) em 1991. As participantes escolheram as datas de 25 de Novembro - Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres - a 10 de dezembro - Dia Internacional dos Direitos Humanos - para fazer uma ligação simbólica entre a violência contra as mulheres e os direitos humanos, e para enfatizar que esta violência é uma violação dos direitos humanos.

Este período de 16 dias também ressalta outras datas importantes que inclui o 1º de Dezembro, Dia Mundial Contra o SIDA, e o 6 de Dezembro, que marca o Aniversário do Massacre de Montreal em 1989 quando 14 estudantes do sexo feminino foram massacradas por um pistoleiro solitário que se opôs às políticas e “medidas de discriminaçaõ positiva” defendidas pelas feministas da Universidade de Montreal.

Desde o seu ínicio, grupos de mulheres usam os 16 Dias de Activismo como veículo para:

  • Aumentar o conhecimento sobre a violência contra as mulheres como questão de direitos humanos aos níveis locais, nacionais, regionais e internacionais

  • Fortalecer o trabalho local sobre violência contra as mulheres

  • Establecer uma ligação clara entre o trabalho local e internacional para acabar com a violência contra as mulheres

  • Criar um foro para partilhar e desenvolver estratégias eficázes

  • Mostrar a solidariedade das mulheres do mundo inteiro que se organizam contra a violência para com as mulheres.

  • Criar instrumentos para pressionar os governos a cumprirem as promessas feitas para o fim da violência contra as mulheres.

Os 16 Dias de Activismo contam com a participação de mais de 2.000 organizações em mais de 154 países desde o seu início em 1991.

4 comentários:

  1. A beleza de suas palavras expressadas em momentos tão cruéis e desumaos.
    Somos demasiadamente torturadas...demasiadamente não comprendidas...somos o fruto completo da sabedoria e do complexo humano.
    Somos a grandeza, a purificação..
    E ISSO AINDA AFETA A HUMANIDAE MASCULINA.

    Tudo isso que lí não foi nenhuma novidade, mas ainda me afeta por demais saber que nos tempos em que vivemos...essa maioria triste é excluída da raça humana que se diz...globalizada.
    Conte com meu apoio.
    Parabéns.
    Abraços,
    Daniela
    vivendoja.blogspot.com

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  2. Abismal, horrendo, inumano, assassínio colectivo, tortura lenta e silenciosa, enfim... existem muitos mais adjectivos para nomear tais atrocidades e perfeita falta de respeito para com a MULHER, mas que não quero sequer pensar neles!
    Emocionei-me com estas longas linhas de sangue e dor. Tinha conhecimento de algumas atrocidades feitas por humanos a humanos, às mulheres que são acima de tudo quem dão á Luz todos os seres humano.
    Estou a ler um Livro "Uma burka por amor" de Reyes Monforte que retrata a história de uma Ocidental que se casou com um Homem Afegão e por sua vez a cultura Afegã durante o regime Talibã. Inacreditável história.

    Vou DIVULGAR estas palavras ao nº máximo de pessoas que conheço.

    Um abraço forte,
    Katija

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  3. Queridas Dani e Katija,
    Obrigada pelas vossas palavras.
    Apesar deste texto ser chocante, é importante que circule vastamente. Se contribuir para a mudança de atitude das pessoas, começando pelos tomadores de decisão, passando pelos sujeitos activos da violência, qualquer que seja a violência, até ao cidadão comum, então a humanidade poderá dar mais um passo para o seu verdadeiro progresso.
    Um beijo nos vossos corações,

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  4. simplesmente horrivel e ainda a uma criança!!!
    e a nos mulheres que somos a pureza e a purificaçao do povo

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